“Mas é preciso ter força/ É preciso ter raça/ É preciso ter gana sempre/ Quem traz no corpo a marca/ Maria, Maria/ Mistura a dor e a alegria/ Mas é preciso ter manha/ É preciso ter graça/ É preciso ter sonho sempre/ Quem traz na pele essa marca/ Possui a estranha mania/ De ter fé na vida”. (Milton Nascimento)
Quando era criança, por volta dos seis anos, me lembro bem, aliás, fato que nunca mais esqueci – uma menina branca, de cabelos loiros e olhos bem azuis da minha escola. Eu, sem saber por que, admirava gratuitamente aquela encantadora menina, sem mesmo saber o que era admiração.
Certo dia, quando minha mãe buscou-me da escola e resolveu passar na casa de minha avó (vó Lilia), eu, criança estranha brincava na copa escura pensando loucuras. Minhas loucurinhas de criança filósofa, quando me deparei ali na minha intimidade, com a menina dos meus sonhos. Fiquei anestesiada. Que raios aquela “princesa” fazia ali? Sua mãe havia levado costura para minha tia, a Maria Costureira, e ela, doce e meiga acompanhava a mãe timidamente. Eu tinha seis anos e ela cinco.
A copa, a meus olhos ficou iluminada com sua presença, sua pele clara e macia, seus olhos azuis emanavam luz pelo cômodo sombrio. Olhos grandes, assustados, confusos e cor do céu. Cabelos lisos, sedosos e amarelos. Aquela menina era tudo que eu queria ser e não podia. Eu a via na escola e me entristecia. Por que Deus fazia algumas pessoas tão belas e outras não? Tentava por mim mesma decifrar esse mistério. Por que havia eu ter nascido tão feia, de pele negra, cabelos crespos, testa avantajada?
Aquele dia nós duas brincamos, coisa que não fazíamos na escola. Eu a tocava cuidadosamente, como um fiel toca uma imagem santa, na crença de alcançar alguma graça, alguma cura ou verdade. E naquele momento eu realmente desejava alcançar a graça de um dia ser branca e ter cabelos “bons”, naquele momento pedia em silêncio a cura desse mal de ter nascido negra. Eu buscava a verdade sobre mim mesma, porque não podia ser como ela? A Santa Priscila?
Priscila era o nome dela. E, enquanto brincávamos, eu ficava feita boba, admirando sua beleza. Meninas como ela eu só via na televisão.
Sugeri que brincássemos de “salão de beleza”. Desculpa é claro para poder tocar seus cabelos demoradamente. Como eram belas as suas madeixas lisas, como deslizava por minhas mãos pequenas e como cheirava bem aqueles cabelos. Priscila interrompeu a “brincadeira” para ir ao banheiro, mostrei-a onde ficava e a esperava avidamente, com medo que ela desistisse de brincar ou que sua mãe a chamasse para ir embora. Enquanto ela estava no banheiro punha-me a pensar – “aquela menina deve ter ido fazer xixi, uma menina tão bonita quanto ela não pode fazer coisa tão suja como cocô”. Eu fazia cocô, mas também eu não era bonita, eu não era nada. Mas Priscila, a quem eu chamava carinhosamente de Pri, com tão pouco tempo de intimidade, ela não. Ela não devia fazer cocô. Tão gracinha, tão fofa, imaculada e divinizada por mim.
Priscila era minha antítese.
Depois que ela foi embora estranhamente senti algum vazio. Meu “sonho” nunca estivera tão perto como naquele dia. Dezoito anos se passaram. Priscila certamente jamais recordará desse dia. Ao contrário de mim, que carrego essa lembrança como um fardo. E de tempos em tempos, essa história ganha significados diferentes, hora trazendo superação e coragem, hora trazendo angústia e medo.
Priscila era tudo que eu queria ser e não podia, ela era branca, e isto bastava. Naquele mesmo fim de tarde, de uma brincadeira aparentemente inocente, me dei conta que eu jamais seria como Priscila, e estava condenada o resto da vida a ter a pele escura. Ao concluir isso senti medo e vazio. Nesta época eu não fazia ideia do que acontecia, eu não sabia exatamente o que era ser negra, mas sabia com muita precisão que ser branca como a Priscila era algo bom, sabia isso só de olhar para ela. Assim, naturalmente doce, naturalmente bela, naturalmente “princesa”, naturalmente santa, “virgem Maria”.
Naquela época eu ainda não sabia o que era racismo, mas o sentia nas minhas entranhas. E como doía não poder ser como Priscila. Que gosto amargo experimentar ainda na infância a sensação de não ser nada, que gosto amargo se curvar ainda tão inocente diante da brancura, sem saber exatamente o que nos leva a tanto.
Quando Priscila foi embora, entrei correndo no banheiro para confirmar minha dúvida: “gente branca caga?” Fiquei lá por alguns minutos, observei a bosta da Priscila. A bosta que ela me deixou como recompensa sem mesmo saber. O cocô boiava e eu o olhava sem pensar muita coisa. Eu nem me importei com o mau cheiro. Na verdade eu não podia nem senti-lo. Diante da brancura dela não havia bosta, não havia odor, não havia mal.
Mas havia eu. Um eu alheio a mim mesma. Um eu descontente por não poder ser como Priscila e pior, nunca poder vir a ser.
Havia dor também, esta é inevitável e desperta cedo nessa gente preta. Ainda menina é preciso lidar com um monte de coisa de gente grande e isso fatalmente não tem escolha. Priscila jamais recordará de mim. Aliás, Priscila hoje, não é uma criança branca, loira e com olhos claros. Priscila é hoje uma mulher. Branca, loira, de olhos azuis, magra. “Perfeita”. Priscila hoje, provavelmente pensa que cor é só um detalhe, para ela a cor não importa porque somo todos iguais. Priscila hoje é contra as cotas e afirma categoricamente que racismo não existe. O mundo da Priscila mulher hoje é tão irreal quanto o mundo da Priscila menina ontem.
E eu? Eu hoje, dou graças à Deus de ser diferente da Priscila. Eu hoje, agradeço meus antepassados pelo legado deixado, principalmente o legado da cor, essa cor magnificamente negra. Eu hoje sei que estou muito além de onde Priscila possa estar, ou ousa estar um dia. Hoje, eu sou um mundo inteiro e além. A brancura da Priscila um dia escureceu minhas vistas. E então eu passei a ver tudo negro. Como tinha que ver.
E ser.
Aline Rafaela Lelis
(Escrito em 19/12/2013)
Tente passar pelo que estou passando Tente apagar este teu novo engano Tente me amar pois estou te amando Baby, te amo, nem sei se te amoTente usar a roupa que estou usando Tente esquecer em que ano estamos Arranje algum sangue, escreva num pano Pérola negra, te amo, te amo Baby, te amo, bem sei se te amoRasgue a camisa, enxugue meu pranto Como prova de amor mostre teu novo canto Escreva num quadro em palavras gigantes Pérola Negra, te amo, nem sei se te amoTente entender tudo mais sobre o sexo ehh Peça meu livro querendo eu te empresto uhh Se inteire da coisa sem haver engano Baby, te amo, nem sei se te amo Pérola negra, te amo, te amo Baby, te amo, nem sei se te amo Pérola Negra, te amo, te amo Pérola Negra, te amo, nem sei se te amo Baby te amo, nem sei se te amo Baby te amo, nem sei se te amo
“A vida à qual Jesus nos chama é completa loucura aos olhos do mundo.”
— Louco amor, Francis Chan.
Busquei tanto por conhecimento, e no final das contas descobri que todos os caminhos me levam a ignorância.
Apostei tanto na ideia de revolução, e no final das contas descobri que o máximo que podemos fazer pelo mundo é mudar a nós mesmos.
Entre idas e vindas, descobri que o melhor lugar para acomodar confortavelmente o coração é no seio da família.
Entre ficar e partir, decidi ir atrás do que realmente vale a pena.
Entre Deus e a ciência, decidi jogar fora anos de estudos da realidade do homem no tempo para adentrar o mistério da fé numa existência atemporal.
Entre o perdão e o esquecimento, apostei na minha capacidade de absolvição, permitindo assim a expansão da consciência e a elevação do espírito.
Entre desistir e continuar, decidi seguir em frente, porque hoje, mais do que antes, sei que Tudo Posso Naquele Que Me fortalece.
Aline Rafaela
Todo mistério de terra, oceano, céu e vulcões. Todo mistério do Planeta e você é só mais um. Um lindo mistério assustado diante desse mundão, assustado diante do espelho. Ser algo incompreensível e indizível. Devíamos todos falar através do silêncio. O mundo todo precisa de silêncio. Viver é completamente solitário e temos que aprender a ficar confortáveis na nossa própria solidão. Esse é o aprendizado. Mal sabemos lidar com nossas emoções e sentimentos. Criamos ciências para explicar tudo. Inclusive a nós mesmos. Mas ainda assim a vida continua um enigma. A morte também. Estamos aqui agora, mas sinto que carregamos muitos vestígios de outros tempos. Dessa vida e de outras. Nós somos uma herança cósmica.
Aline Rafaela
Tem tristeza que não vale a pena,
E passado que não vale um poema.
Aline Rafaela
Será que o amor não é tão-somente vontade de amar?
Fabrício Carpinejar
Carolina Maria de Jesus, no livro ‘50 poemas de revolta’. São Paulo: Companhia das Letras, 2017 https://www.instagram.com/p/BqaLnWdFC3P/?utm_source=ig_tumblr_share&igshid=tsaiur0uiipn
Ele não é muito de palavras, e isso é bom, porque tenho aprendido que atitudes são muito maiores que discursos, e que ações são infinitamente maiores que promessas. Que bom que ele apareceu assim, silencioso, sem alarde, sem enfeites. Ele não ensaia intensidades, não dá para trás, não se deixa levar pelo medo. Na verdade, ele tem plena consciência que o medo faz parte. E se entrega com tanta verdade, e mergulha com tanta vontade... Ah... e o que dizer quando ele vai fundo...
Esquecemos do mundo e nos abraçamos profundo.
Aline Rafaela
(Canção de Di Melo)