Homem-paradoxo, assim nomeei meu opressor. Homem metade raposa e metade escorpião. O paradoxo estava estampado em sua testa, ele se vestia de combatente das injustiças do mundo ao mesmo tempo que oprimia mulheres e meninas que estavam sob seu comando. Porque homens assim, covardes como ele, gostam de se sentirem poderosos, gostam de ter a vida de jovens meninas sonhadoras nas suas mãos. O homem paradoxo tinha uma mente doentia como a de H. Humbert, no entanto, não havia sarcasmo na sua postura, muito menos humor. Havia apenas maldade. Um coração sujo. Meu opressor me deixou confusa, mexeu com meu juízo, me fez sair de mim. Fui salva pela fé, e pela esperança de um dia sair das suas garras e nunca mais provar do seu veneno. Minha fé valeu e ainda vale, porque hoje percebo que meu opressor, o homem-paradoxo, não tem um terço do que eu tenho. Dignidade e amor. Meu opressor é digno de dó. E hoje, em vez de vingá-lo. Oro por ele, porque ele não faz ideia do que é ser amado. Ele nem imagina o que o bem é capaz de fazer. Ele não sabe da liberdade de ser o que se é, e acima de tudo, ele não vê o sagrado da vida. Porque para ele a vida não passa de um jogo.
Aline Rafaela Lelis
Tenho certa afinidade com a ironia, acredito que sem ela a vida seria trágica demais. Simpatizo tanto com a ironia quanto do deboche. Às vezes é necessário não levar tanto ao pé da letras as coisas da vida, e se permitir rir das pequenas e grandes tragédias que nos ocorrem em nossos caminhos.
Aline Rafaela
O que dá pra rir dá pra chorar. Questão só de peso e medida. Problema de hora e lugar, Mas tudo são coisas da vida.
(Conto chorado, Os Originais do Samba)
Rapaz, hoje meu sorriso sincero invade qualquer lugar que eu passo, e meu corpo adquiriu certa postura que diz: venha se tiver coragem, e se for nobre para fazer par com uma rainha. Isso mesmo, rainha. Porque hoje, eu trago marcas de quem lutou muito para construir seu próprio reinado, de quem desceu ao inferno para reconstruir a sua dignidade de mulher. E, sinto muito se você não está pronto. Muitos não estarão. Mas uma rainha sabe reconhecer nos olhos e na postura um rei. Porque hoje, eu sei muito mais sobre os homens, e estou em sã consciência de escolher aquele que comigo irá construir um império. No amor, na reciprocidade, no respeito e na mesma direção.
Aline Rafaela.
Ah, se eu soubesse quem sou. Se outro fosse meu rosto. Se minha vida-magia Fosse a vida que seria Vida melhor noutro rosto. Ah, como queria cantar De novo, como se nunca tivesse De parar. Como se o sopro Só soubesse de si mesmo Através da tua boca, Como se a vida só entendesse O viver, Morando no teu corpo e a morte Só em mim se fizesse morrer.
HILST, Hilda. Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. p.31
A academia é o lugar onde mais encontrei hipocrisia; porque os ditos produtores do conhecimento que almejam mudar o mundo, mal sabem que suas pretensões absurdas não os tornam nem especiais, nem mais críticos, os tornam apenas mais tolos; porque são incapazes de reconhecer sua própria pequenez e ignorância diante do mundo.
Aline Rafaela Lelis
“A única esperança de transformação é que você possa mudar a si mesmo.”
De todos os seres existentes (e os há aos milhões), o homem é apenas um. Dentre os milhões de homens que vivem na Terra, o povo civilizado que vive da agricultura é apenas uma pequena proporção. Menor ainda é a quantidade dos que, homens de escritório, ou de fortuna, viajam, de carruagem ou de barco. E, destes todos, um homem na carruagem nada mais é do que a ponta do fio de cabelo no flanco de um cavalo. Por que, então, toda esta agitação acerca de grandes homens e de grandes empregos? Por que todas as discussões dos eruditos? Por que todas as controvérsias dos políticos? Não há limites fixos, o tempo não permanece imóvel. Nada dura. Nada é final. Você não pode segurar o fim ou o princípio. O sábio vê o próximo e o distante como se fossem idênticos. Ele não despreza o pequeno, nem valoriza o grande. Onde todos os padrões se diferem, como poderá você comparar? Com um olhar ele se apodera do passado e do presente; sem tristeza pelo passado. Nem impaciência pelo presente. Tudo está em movimento, tem experiência da plenitude e do vazio. Não se rejubila no sucesso, nem lamenta o insucesso. O jogo nunca está terminado. O nascimento e a morte são iguais. Os termos nunca são finais.
Os Dilúvios de Outono, Chuang Tzu. MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. pp- 133-134)
Amada alma,
Como é bom sentir sua presença. Mesmo que ainda não seja por completo, sinto que já posso farejar teus vestígios pela floresta. Eu já adentrei a floresta e passei de um estado inconsciente para um estado semi-consciente. O fato de saber que estais aqui nesta floresta já é suficiente para alegrar-me. Quando sua presença se fizer plena para mim, quero envolver-te em meus braços como uma criança que corre para abraçar alguém que ela verdadeiramente ama. Amada alma, jamais quero me afastar de ti novamente. É possível seguirmos juntas pelo resto de minha vida terrena? Se for possível, escolho sempre caminhar contigo e viver feliz e realizada na floresta que nos alimenta e dá vida. Amada alma, paciência! O pior já passou e sei que trombaremos em breve em alguma árvore dessa imensa selva.
Escrito em 31/10/2016.
Olhinhos amendoados
Sempre foi tão bonitinha
Desde pequeninha a pregar peças
Se esconde e salta da moita
Assusta quem passa na calçada
Corre, grita e dança
Um cisquinho a perambular
De esquina em esquina,
Casa de vó casa de mãe
Olhinhos amendoados
Observa o movimento
Planeja suas travessuras
De menina-moleque-feliz
Não se importa com os gritos
Abstrai tudo e vai brincar
Sempre rindo, sempre esperta
Malandragem que fala
Alfinete que espeta
Risada que contagia, é tudo brincadeira
Pra quê levar a vida tão à sério?
Olhinhos de amêndoas atentos
Menina das perninhas de graveto
Negra Cabeleira ao vento
Lá vai aqueles olhinhos descendo e subindo o morro
Empurrando a bike ou correndo de cachorro
Olhinhos amendoados te conheço já faz um bocado
Ora desperta amor,
Ora esse amor vai pro ralo
Mas olhinhos amendoados
Só vim dizer
Obrigado!
Para A.L.
Aline Rafaela Lelis
“Mas é preciso ter força/ É preciso ter raça/ É preciso ter gana sempre/ Quem traz no corpo a marca/ Maria, Maria/ Mistura a dor e a alegria/ Mas é preciso ter manha/ É preciso ter graça/ É preciso ter sonho sempre/ Quem traz na pele essa marca/ Possui a estranha mania/ De ter fé na vida”. (Milton Nascimento)
Quando era criança, por volta dos seis anos, me lembro bem, aliás, fato que nunca mais esqueci – uma menina branca, de cabelos loiros e olhos bem azuis da minha escola. Eu, sem saber por que, admirava gratuitamente aquela encantadora menina, sem mesmo saber o que era admiração.
Certo dia, quando minha mãe buscou-me da escola e resolveu passar na casa de minha avó (vó Lilia), eu, criança estranha brincava na copa escura pensando loucuras. Minhas loucurinhas de criança filósofa, quando me deparei ali na minha intimidade, com a menina dos meus sonhos. Fiquei anestesiada. Que raios aquela “princesa” fazia ali? Sua mãe havia levado costura para minha tia, a Maria Costureira, e ela, doce e meiga acompanhava a mãe timidamente. Eu tinha seis anos e ela cinco.
A copa, a meus olhos ficou iluminada com sua presença, sua pele clara e macia, seus olhos azuis emanavam luz pelo cômodo sombrio. Olhos grandes, assustados, confusos e cor do céu. Cabelos lisos, sedosos e amarelos. Aquela menina era tudo que eu queria ser e não podia. Eu a via na escola e me entristecia. Por que Deus fazia algumas pessoas tão belas e outras não? Tentava por mim mesma decifrar esse mistério. Por que havia eu ter nascido tão feia, de pele negra, cabelos crespos, testa avantajada?
Aquele dia nós duas brincamos, coisa que não fazíamos na escola. Eu a tocava cuidadosamente, como um fiel toca uma imagem santa, na crença de alcançar alguma graça, alguma cura ou verdade. E naquele momento eu realmente desejava alcançar a graça de um dia ser branca e ter cabelos “bons”, naquele momento pedia em silêncio a cura desse mal de ter nascido negra. Eu buscava a verdade sobre mim mesma, porque não podia ser como ela? A Santa Priscila?
Priscila era o nome dela. E, enquanto brincávamos, eu ficava feita boba, admirando sua beleza. Meninas como ela eu só via na televisão.
Sugeri que brincássemos de “salão de beleza”. Desculpa é claro para poder tocar seus cabelos demoradamente. Como eram belas as suas madeixas lisas, como deslizava por minhas mãos pequenas e como cheirava bem aqueles cabelos. Priscila interrompeu a “brincadeira” para ir ao banheiro, mostrei-a onde ficava e a esperava avidamente, com medo que ela desistisse de brincar ou que sua mãe a chamasse para ir embora. Enquanto ela estava no banheiro punha-me a pensar – “aquela menina deve ter ido fazer xixi, uma menina tão bonita quanto ela não pode fazer coisa tão suja como cocô”. Eu fazia cocô, mas também eu não era bonita, eu não era nada. Mas Priscila, a quem eu chamava carinhosamente de Pri, com tão pouco tempo de intimidade, ela não. Ela não devia fazer cocô. Tão gracinha, tão fofa, imaculada e divinizada por mim.
Priscila era minha antítese.
Depois que ela foi embora estranhamente senti algum vazio. Meu “sonho” nunca estivera tão perto como naquele dia. Dezoito anos se passaram. Priscila certamente jamais recordará desse dia. Ao contrário de mim, que carrego essa lembrança como um fardo. E de tempos em tempos, essa história ganha significados diferentes, hora trazendo superação e coragem, hora trazendo angústia e medo.
Priscila era tudo que eu queria ser e não podia, ela era branca, e isto bastava. Naquele mesmo fim de tarde, de uma brincadeira aparentemente inocente, me dei conta que eu jamais seria como Priscila, e estava condenada o resto da vida a ter a pele escura. Ao concluir isso senti medo e vazio. Nesta época eu não fazia ideia do que acontecia, eu não sabia exatamente o que era ser negra, mas sabia com muita precisão que ser branca como a Priscila era algo bom, sabia isso só de olhar para ela. Assim, naturalmente doce, naturalmente bela, naturalmente “princesa”, naturalmente santa, “virgem Maria”.
Naquela época eu ainda não sabia o que era racismo, mas o sentia nas minhas entranhas. E como doía não poder ser como Priscila. Que gosto amargo experimentar ainda na infância a sensação de não ser nada, que gosto amargo se curvar ainda tão inocente diante da brancura, sem saber exatamente o que nos leva a tanto.
Quando Priscila foi embora, entrei correndo no banheiro para confirmar minha dúvida: “gente branca caga?” Fiquei lá por alguns minutos, observei a bosta da Priscila. A bosta que ela me deixou como recompensa sem mesmo saber. O cocô boiava e eu o olhava sem pensar muita coisa. Eu nem me importei com o mau cheiro. Na verdade eu não podia nem senti-lo. Diante da brancura dela não havia bosta, não havia odor, não havia mal.
Mas havia eu. Um eu alheio a mim mesma. Um eu descontente por não poder ser como Priscila e pior, nunca poder vir a ser.
Havia dor também, esta é inevitável e desperta cedo nessa gente preta. Ainda menina é preciso lidar com um monte de coisa de gente grande e isso fatalmente não tem escolha. Priscila jamais recordará de mim. Aliás, Priscila hoje, não é uma criança branca, loira e com olhos claros. Priscila é hoje uma mulher. Branca, loira, de olhos azuis, magra. “Perfeita”. Priscila hoje, provavelmente pensa que cor é só um detalhe, para ela a cor não importa porque somo todos iguais. Priscila hoje é contra as cotas e afirma categoricamente que racismo não existe. O mundo da Priscila mulher hoje é tão irreal quanto o mundo da Priscila menina ontem.
E eu? Eu hoje, dou graças à Deus de ser diferente da Priscila. Eu hoje, agradeço meus antepassados pelo legado deixado, principalmente o legado da cor, essa cor magnificamente negra. Eu hoje sei que estou muito além de onde Priscila possa estar, ou ousa estar um dia. Hoje, eu sou um mundo inteiro e além. A brancura da Priscila um dia escureceu minhas vistas. E então eu passei a ver tudo negro. Como tinha que ver.
E ser.
Aline Rafaela Lelis
(Escrito em 19/12/2013)
"Se acreditarmos que a mente é contínua, o nosso amor pelos outros torna-se contínuo.Se reconhecemos essa continuidade, nós não confiamos no temporário, nas circunstâncias tangíveis, ou as levamos tão a sério. Se acreditamos na continuidade da mente, então o amor discretamente nos conecta com aqueles que amamos, com energia contínua positiva, de modo que mesmo tangíveis separações entre as pessoas que se amam não reduzem o poder intangível do amor. Por acreditar na continuidade da mente, reconhecemos a continuidade de todas as circunstâncias, incluindo nossas experiências de amor, que não são apenas por um momento ou por uma vida."
- Trinley Norbu Rinpoche.
Ele não é muito de palavras, e isso é bom, porque tenho aprendido que atitudes são muito maiores que discursos, e que ações são infinitamente maiores que promessas. Que bom que ele apareceu assim, silencioso, sem alarde, sem enfeites. Ele não ensaia intensidades, não dá para trás, não se deixa levar pelo medo. Na verdade, ele tem plena consciência que o medo faz parte. E se entrega com tanta verdade, e mergulha com tanta vontade... Ah... e o que dizer quando ele vai fundo...
Esquecemos do mundo e nos abraçamos profundo.
Aline Rafaela