Não me abençoe, padre! Pois eu pequei.
Padre, você sentiu minha falta? Estive trancada por um tempo. Eu fui pega pelo que fiz, mas levei tudo em grande estilo. Descansei por todas as minhas confissões que eu trago comigo. Mas agora minha versão é muito pior. Então, estou de volta. Veja, eu irei para o inferno, Padre, eu sei. Pelos versos que eu tomei, eu vou para o inferno, pelo amor que eu vou fazer, eu vou para inferno sendo carregada pelo diabo. Você pode ouvir os sinos do casamento? Você pode. Padre, você sentiu minha falta? Não me pergunte onde estive, alias você sabe que eu sei, sim, me contaram que eu redefini o pecado e agora eu não sei o quê está me levando a colocar isso na minha cabeça, talvez eu queira poder morrer, talvez eu já esteja morta, pelas vidas que eu tomei, pelos votos que eu quebrei, pelo homem que odeio, pelo jeito que eu machuco enquanto levanto a minha saia, eu sei, Padre, eu vou para o inferno. Eu estou sentada em um trono enquanto eles estão sendo enterrados na sujeira. Por favor, me perdoe. Padre, eu não queria incomodá-lo, mas é que o diabo está em mim, Padre, ele está dentro de tudo o que faço. Pelas vidas que eu tomei, pelas leis que eu infringi, pelo homem que eu odeio, pelas mentiras que eu inventei, eu vou para o inferno. Pelo jeito que eu condescendo e nunca estendo a mão, minha arrogância está fazendo minha cabeça queimar na areia. Pelas almas que eu abandonei, eu vou para o inferno casada com o diabo. Você pode ouvir os sinos do casamento? Din, don. Eu sei que pode. Você pode, Padre, você e todos aqui presentes.
Hesitei incontáveis vezes antes de traçar a primeira palavra desta carta. Durante dias, vaguei entre pensamentos desordenados e sentimentos que se recusavam a ser domados pela linguagem. Como explicar algo que nem eu mesma compreendo? Como traduzir uma dor que me escapa toda vez que tento agarrá-la? Tenho medo de que estejamos distantes demais para que qualquer explicação faça diferença e isso me dói mais do que posso admitir. E eu lamento por isso.
Mas, Chico, ontem à noite, sonhei.
Depois de um tempo que já me parecia eterno, sonhei. Tu te lembras das minhas lamúrias constantes, da minha queixa desmedida de que apenas sabia contar os dias quando as noites me ofertavam sonhos? Pois bem, recomecei. Na noite um de 9 de fevereiro, o tempo voltou a fluir. No entanto, não me apresso em te ofertar consolo, pois o que tenho a contar não é notícia inteiramente boa. Te explico.
Eu amava, Chico.
Amava com a devoção impetuosa e incontrolável de uma menina que, desconhecendo os limites do próprio coração, atira-se ao abismo do sentir sem temor algum. Embriaguei-me no êxtase desse amor e, sem pudor ou prudência, vivi. Mergulhei nesse amor sem reservas, sem questionar, sem me proteger. Deixei que esse amor me tomasse por inteira, que me fizesse perder o medo e o juízo. Voei como quem ignora que asas também se partem. Fui feliz, Chico. Intensamente, absolutamente, irracionalmente feliz. E, por Deus, eu sentia! Em cada fibra do meu ser, em cada batida ansiosa do meu peito, eu sentia. O amor me incendiava, consumia-me até o cerne, e eu, tola, acreditei ser amada na mesma medida.
Mas a vida, essa grande ironista, reserva-nos formas brutais de provar que tudo o que acreditamos viver pode não ter passado de um sussurro efêmero no vento. Que anos podem não ser mais que fragmentos de uma ilusão mal urdida. Que todo aprendizado se desfaz ao primeiro toque de um coração ingênuo demais para guardá-lo. E, no fim, Chico, tudo se reduziu a isto: um amor juvenil, um devaneio imaturo, um delírio insustentável.
E eu, louca, acreditei.
Deixei um convite sobre a mesa dele. Escrito com calma, com letras desenhadas como se cada traço pudesse garantir o destino que eu tanto queria: “Encontre-me às duas, em frente à Duomo de Florença. Vista seu melhor terno.”
Já consegues antever o desfecho trágico, não é? Mas eu, cega na minha esperança infantil, não. Eu esperançava, Chico! E esperançava tanto que me vesti para um sonho. Escolhi meu vestido mais belo, ajeitei os cabelos com esmero, colori os lábios com a cor dele e pisei em saltos finos como se estivesse à altura da ocasião — a ocasião do meu próprio casamento.
Não me alongarei nos detalhes, pois já não sei se valeriam a pena. Mas ele veio, Chico. Ele veio. E estava belo, como eu ousara imaginar. Quisera eu poder dizer que vislumbrei a imagem de um anjo quando o vi subir os degraus da catedral. Mas não. Associar tamanha beleza a algo celestial seria heresia.
Eu sonhei, Chico.
E cada degrau que ele subia era como uma lâmina a me atravessar o peito. O tempo se dissolvia, e a dor que ali nascia parecia anterior à minha própria existência, como se eu tivesse vindo ao mundo para senti-la. Como se fosse uma sina. Como se Deus, do alto de Seu trono, observasse minha desgraça com deleite silencioso, sem intenção alguma de intervir.
Foi belo, Chico.
Tão belo que chorei.
E então acordei.
Acordei no exato instante em que a porta dos fundos se fechava, selando o destino do que nunca fora verdadeiramente nosso. Um fim tão absoluto quanto o silêncio após um último suspiro. O fim de um amor juvenil, de um verão desfeito em outono. E o que restou de tudo isso? Apenas uma carta, largada sobre a mesa ao lado da minha cama.
O papel, Chico, trazia uma caligrafia diferente da minha. Apressada, desprovida de zelo ou de qualquer vestígio de afeto. Não havia hesitação nem doçura, apenas um veredito cruel e inapelável:
“Sinto lhe decepcionar, mas não podemos nos casar! Meu coração pensou que te pertencesse, mas ele se enganou! Até nunca mais!”
E assim, Chico, acabou-se.
Com amor, sua Heresia.
— b.m
o teu silêncio cravado na minha boca. as tuas insanidades preenchendo os meus pulmões. as tua toxinas matando as minhas incertezas. eu te quero em cada molécula que me compõe. em cada átomo. em cada espaço. eu quero te misturar em sangue venoso e arterial. e mesmo assim ser completa. te quero na minha caixa toráxica. exalando. inspirando. expirando. eu quero te tragar. te trazer em mim. me sufocar nas tuas ausências. e me jogar no teu vazio. morrer no raso. que é te amar.
— For A.
Sou ampla e pesada. E você, pequeno. Em mim há uma profundeza e nela possui uma bagagem e tanto. E você, raso, aparentemente forte, mas fraco. Talvez me aguente transbordando por mais alguns dias, ou minutos. Mas não por uma vida inteira.
ㅤEu te pediria desculpas por esse texto só pela sua cara de desapontado, mas não costumo me desculpar por ser sincera – a sinceridade é meio escrota de vez em quando, eu sei. Mas, você sabe, a verdade é sempre bem-vinda, embora algumas vezes – como agora – não passe de uma filha da puta. Senta aqui. Eu também já levei um pé na bunda. Eu disse que ele não estava preparado para uma mulher como eu. Você sabe, ele se boicotou. Essa gente tem medo de ser feliz. Depois eu pensei que ele talvez estivesse numa fase confusa ou tivesse problemas pra se relacionar. Talvez ele tivesse câncer terminal e não quisesse me machucar. Ou uma ex-namorada que me mataria se me visse com ele. É claro que ele só queria me proteger. Bem, no fim das contas, ele tinha outra. Era essa a dura e inadmissível realidade. Não havia nenhuma justificativa prévia, nenhuma explicação mirabolante: ele simplesmente não me queria. Era só um pé da bunda. Era só um cara me rejeitando do jeito mais miseravelmente simples do mundo. Então, ela também não se boicotou. Ela não está chateada porque você foi um imbecil indiferente naquela sexta-feira. Ela não está te ignorando só porque você esqueceu de parabenizá-la pessoalmente no aniversário dela. A verdade – que deve ter socado o seu estômago no exato momento em que você a descobriu – é que ela não dá a mínima. E tudo bem. Você deve saber que isso não é exatamente um atestado tácito de que você é um partido ruim – aliás, fodam-se os bons partidos. As pessoas se cruzam, se amam, se detestam ou simplesmente permanecem indiferentes e isso não é um problema nosso. É questão de conexão, do bom e velho desejo mútuo que nem sempre dá as caras. E a gente continua mascarando isso com frases clichê que até poderiam fazer parte de um “Manual de como não ser imbecil ao dispensar alguém”: “A pessoa certa no momento errado”, “Não é você, sou eu!”, “Não quero me envolver com ninguém”… Tudo isso é ladainha – uma ladainha muito elegante, confesso – de quem simplesmente não está a fim de tentar. Não existe momento errado para a pessoa certa. A vontade é que move as coisas – e as pessoas, principalmente. Então, quem não te procura simplesmente não quer te procurar, e quanto mais cedo você parar de criar teorias mirabolantes que justifiquem isso, mais cedo você estará pronto para o próximo pé na bunda – você sabe, ele sempre vem.
Oh, you fill my head with pieces of a song I can't get out!
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