a menção aos montantes mensais que graziella insistia em destinar a causas sociais enchia neslihan de um orgulho sereno . sabia que o gesto provinha da genuína bondade que residia na essência da outra , e não como um subterfúgio fiscal para a vasta fortuna que detinha . era essa sinceridade que a diferenciava , embora qualquer um que apenas conhecesse a fachada meticulosamente calculada que a giordano apresentava ao mundo pudesse supor o contrário . agraciada com a verdadeira face daquela amizade , no entanto , sentia-se imensamente grata ao universo por ter tal presença em sua vida . ❝ tenho algumas opções , mas pensei que , dessa vez , você pudesse escolher . ❞ arqueou as sobrancelhas levemente , em sugestão . queria que a outra tivesse uma voz mais presente naquelas decisões . ❝ temos opções de lares sociais para mulheres , e famílias , em situações vulneráveis , lares para crianças em tratamento oncológico , organizações de proteção infanto-juvenil e incentivo à educação , construção de creches e berçários , além de clínicas de reabilitação infantil... posso te encaminhar a lista completa depois , você pode escolher um , ou todos . mas me ajude a decidir , grazi ? ❞ a expressão era gentil , carregada de esperança e intencional . o tema melancólico , logo deu lugar a um tom de leve exasperação, provocado pelos burburinhos que preencheram sua manhã . ❝ a única parte boa do meu dia até agora foi acordar com chaz e mark aconchegados na minha cama . ah , e te ver , claro ! ❞ com uma piscadela exagerada acrescentou , acompanhada de uma breve risada . era curioso como parecia ver a amiga com mais frequência do que o próprio reflexo no espelho . ❝ tenho um novo caso que saberei mais detalhes à tarde . mas , para ser honesta , tenho um mau pressentimento , que não adianta me debruçar sobre agora , ou só me deixará mais ansiosa . ❞ meneou a cabeça levemente , afastando os pensamentos inquietantes ao perceber a proximidade do restaurante . ❝ e você ? por favor , me diga que sua manhã foi mais emocionante do que a minha com os meus cachorros ! ❞ subindo os pequenos degraus da entrada , em um movimento ágil , empurrou a pesada porta ornamentada d'il giardino , oferecendo um sorriso cortês ao maître d' . com o mencionar dos sobrenomes de ambas , uma mesa externa as esperava . ❝ como está o meu martinez-giordano preferido ? ❞ a expressão era radiante ao referir-se a romeo , a simples menção do nome fazia o ambiente se enriquecer com o afeto que nutria pela figura tão diminuta .
Graziella sabia que o modo como a mulher expressou a real intenção da italiana não foi de modo julgador, ainda mais porque sabia que uma das grandes motivações da Giordano era sempre se manter em cima. "É uma habilidade para poucos, estou ciente disso. Mas é uma que eu fico feliz em compartilhar consigo." Deu de ombros brevemente, mantendo o sorriso. Além faturar bastante dinheiro, Graziella gostava igualmente de gastá-lo e quando se tratava da melhor amiga, só havia um destino para o depósito. "Estou aguardando qual instituição deseja que seja feito o depósito desse mês." Anunciou enquanto direcionavam-se até o restaurante aonde iriam almoçar. Essa atitude da empresária era de conhecimento exclusivo de Nes, não apenas porque gostaria de manter segredo, mas porque, devido ao seu jeito e sua personalidade, ninguém sequer poderia imaginar que uma mulher que parecia tão arrogante quanto Graziella poderia ter um gesto grandioso. E ela preferia que continuasse dessa forma. "Como foi o dia até agora? E sem falar sobre esses burburinhos apaixonados porque não aguento mais. Parece que a cidade é só isso agora."
o sarcasmo na voz grave era um alento ansiado , uma familiaridade que a fazia esboçar um sorriso . aaron acreditava no amor tanto quanto ela mesma — céticos do sentimento inexistente . em outra realidade , uma em que não fossem moldados por passados que os impediam de se permitirem liberdades emocionais , poderiam talvez formar um par perfeito , alcançando juntos o mais próximo do que aquela emoção inventada prometia . ao notar o olhar que ele lhe lançava de soslaio , permitiu-se um ínfimo tremor no canto dos lábios . mas ali a verdade era imutável , neslihan jamais consentiria em ser destino final dele . o melhor amigo de sua vida merecia felicidade plena , e ela era o exato oposto . em sua percepção , ninguém ali era digno dele , cujo coração trancafiado guardava uma bondade infinita . ele não era como ela , não precisava lutar para melhorar o mundo para compensar as máculas que fervilham dentro de si .
o fluxo dos pensamentos era interrompido pelo riso dele — e , mesmo sem ter se atentado às palavras que precederam o som , deixou que a própria risada o acompanhasse . a provocação era um bálsamo apreciado , e a descontração logo se refletia em sua expressão . ❝ nós dois sabemos que eu danço muito bem , só espero que você tenha praticado desde a última vez em que te arrastei para aquela festa que mudou o meu destino . ❞ a mulher possuía desenvoltura suficiente para se adaptar ao ritmo latino , e , mais do que isso , a sintonia entre os dois era natural . ação e reação . o desafio era instigante , mesmo que ela duvidasse que sairia dali uma exímia dançarina de salsa . ❝ por favor , se fosse real , todos sabem que seríamos o casal com maior sintonia entre todas as possibilidades . ❞ voltando-se para ele , ainda com o braço entrelaçado ao seu , apontou a manicure carmesim em uma concordância veemente . ❝ é exatamente isso . você sabe que me recuso a me envolver com qualquer um dessa cidade justamente por essa necessidade que todos têm de comentar e julgar cada passo . agora , com os nossos nomes na ponta da língua de cada um , ficou impossível encontrar um instante de sanidade . ❞ não ousaria mencionar olivia naquele momento — não enquanto a irritação ainda latejava em sua mente . a amiga transformara sua rotina em um caos absoluto com aquelas palavras proclamadas em público , e neslihan não queria imaginar a reação de aaron se trouxesse o detalhe à tona .
com o tom diminuindo , se inclinou levemente em direção a ele , na tentativa de captando a confidência que parecia prestes a ser dita . ❝ estou começando a achar que , na verdade , você realmente acredita nessa história de maldição e quer que eu seja o seu felizes para sempre. ❞ arquejando , revirou os olhos , ainda que algo se enraizasse em sua consciência . era um pensamento descartável , e , ainda assim , ali estava , persistente no fundo de sua mente . ao retornarem à repartição envidraçada , assentiu , as íris se conectando às dos professores , enquanto o calor da mão dele a reconfortava . aproximando-se , ofereceu um sorriso gracioso , levemente ensaiado , ao casal que os guiaria . ❝ espero que não sejamos os piores alunos que já tiveram a infelicidade de ensinar . ❞ o humor autodepreciativo era uma estratégia eficaz para desarmar expectativas . ❝ mas prometo que seremos os mais dedicados . nosso gênio aqui aprende tudo em uma velocidade surpreendente . ❞ afagando a palma de aaron que repousava em seu ombro , piscou para a professora , que sorriu em resposta e rapidamente os posicionou onde deveriam começar . desfazendo o meio abraço , buscou a canhota alheia , entrelaçando os dedos aos dele , enquanto deslizava a própria até o deltoide desenvolvido . ❝ preparado ? ❞
Aaron deixou escapar um som curto, algo entre um riso baixo e um suspiro. "Ah, claro. O tão conhecido destino das almas gêmeas platônicas." Sua voz carregava a ironia de sempre, mas não um deboche real. Ele entendia o que ela queria dizer, e talvez, em uma outra vida, acreditaria nessa possibilidade. Mas a verdade era que era difícil acreditar em qualquer tipo de amor. Ainda assim, amenizou a dureza na expressão e o próprio tom de voz. "Mas se fôssemos mesmo alma gêmea, eu não iria reclamar". Ele lançou um olhar lateral para Nes, absorvendo a tensão quase imperceptível que ela tentava esconder. Aaron sabia que aquele tipo de exposição a incomodava mais do que queria admitir. Sabia porque, apesar de toda a racionalidade que exalava, ela também evitava certos riscos como ele. Por isso, acrescentou em brincadeira, tentando arrancar um sorriso dela. "Sabe, consigo imaginar alguns sacrifícios piores". E ele riu, porque ambos sabiam que não seria sacrifício algum para Blackwell. Se pudesse passar o dia inteiro na companhia de Nessie, ele passaria. "Mas, escuta, se a gente for mesmo uma ironia cósmica, espero que a gente pelo menos consiga dançar decentemente. Seria um pouco humilhante descobrir que o universo quer que a gente fique juntos e a gente não acerta nenhum passo. Cadê nossa sintonia, dona Neslihan Gökçe?" A provocação foi acompanhada de um sorriso enviesado antes dele continuar, agora de forma mais despreocupada: "E sobre ser assustador... eu diria que é mais um incômodo do que um pavor real. Você sabe, a última coisa que eu quero é que a cidade inteira se sinta no direito de dar opinião sobre minha vida amorosa." Ele fez uma pausa, então completou com um tom mais baixo, quase como se estivesse concedendo algo: "Mas falando sério agora, se for para passar por isso com alguém, não me incomodo nem um pouco que seja com você." Ele colocou a mão nas costas dela, e lenta e gentilmente a empurrou mais para o centro da sala. "Agora vamos ver se o destino também acredita no nosso talento para a salsa." Acrescentou, decidindo passar um dos braços sobre os ombros dela para dar mais segurança e proteção à amiga.
FUBAR 1.05
look, i'm planted here, okay? what're you gonna do about it?
❝ one day she will discover that not even she can hold herself back because her passions burn brighter than her fears !
@khdpontos
missing object : o broche de kimberly by : @aaronblackwell & @neslihvns 📍 monte cielo - polizzi generosa , região metropolitana de palermo . sicília !
Aaron estava sentado diante do laptop, a tela iluminando seu rosto cansado. O Monte Cielo era um desafio real, muito além de uma simples escalada. Ele analisava mapas topográficos, cruzava informações meteorológicas e lia relatórios de expedições anteriores – as poucas que tinham voltado para contar a história. O tempo ali era instável, as tempestades podiam se formar em questão de horas, e o gelo acumulado tornava tudo mais traiçoeiro. O que mais chamava sua atenção, no entanto, era a falta de registros sobre o Vale dos Desaparecidos. Nenhuma informação concreta, nenhuma explicação plausível. Apenas teorias e lendas.
Ele já teria descartado isso antes. Mas agora? Agora ele estava aceitando que talvez existisse algo além do que a lógica poderia explicar. Não era só o mistério do monte, ou o fato de todos que tentaram voltar de lá saírem confusos, era tudo que estava acontecendo com eles. A maldição, as coincidências que não pareciam coincidências, e principalmente... Nes. A presença constante dela em sua vida, a parceria entre eles, a sintonia e as similaridades. Blackwell passou muito tempo pensando na história das almas gêmeas e em como talvez Nes ocupasse um lugar outro, ainda mais especial para ele, de irmã, de quem ele podia contar.
Por mais que Neslihan ainda nutrisse profunda resistência em aceitar que aquilo tudo poderia envolvê-la de qualquer forma que fosse, Aaron parecia querer desvendar e ponderar sobre o mistério, Olivia parecia querer encontrar verdadeiro amor em sua vida — e desconfiava dos motivos para tal —, e não havia medo de condenar alguém a passar o resto da vida consigo no mundo que a faria rejeitar duas das mais importantes presenças em sua vida. Obra do acaso, ou não, porque ela tinha um quê de dúvida acerca da imparcialidade de Aaron com aquela divisão, a Gökçe o tinha ao seu lado, e fora o único motivo por ceder mais facilmente às demandas de Zafira. As passagens, reservas e credenciais eram todas adquiridas com relutância, bem como o guia, que, por segurança ante as informações que recebera de Ace, vira-se obrigada a contratar.
Palermo. A cidade conversava com Neslihan pela confluência de culturas que a compunha, assim como fazia com a mulher, pela arte e pela gastronomia. O azul do Tirreno a acalmava, talvez pela possibilidade de perder-se na imensidão que comportava. A Sicília como o afago de uma avó, que ela nunca conhecera, mas na ilha sentia o calor do afeto. Chegar até o local era relativamente fácil, a viagem de carro até Florença era carregada de uma tensão sutil, embora as palavras entre eles fluíssem com a familiaridade de mais de duas décadas. Já o voo de pouco mais de uma hora era passado em completo silêncio, os pensamentos perambulando de um canto a outro do mundo ante as possibilidades e a monumentalidade do que o futuro reservava. Com o desembarque, outro carro elétrico os esperava, e a distância entre o aeroporto e o Grand Hotel et des Palmes era percorrida em um piscar de olhos ressecados e pálpebras em espasmo, inquietação e apreensão consumindo cada terminação nervosa do próprio corpo. Com os nomes deles dados na recepção, era como um anúncio apocalíptico do que os esperava. A noite que deveria ser um interlúdio de descanso, logo tornou-se um turbilhão de inquietude, e a mulher viu-se tentada a procurar alento no imprevisível, somente a noção de que Aaron estava a alguns metros longe de si, fez com que se contentasse com inúmeras voltas na piscina, o gélido da água cortando a apreensão que se alastrava por seus membros.
As mochilas abastecidas de provisões os esperavam na manhã seguinte, ambas fixas ao aperto de Alessandro, quem os orientaria e guiaria o caminho pelo Monte e Vale. A expressão adornando o rosto alheio só poderia ser descrita como contrária e reticente, e um toque apreensivo se esgueirou pela consciência de Neslihan, mas a urgência em suas veias logo fez com que o raciocínio se dissipasse. O navegador dava as direções enquanto tensão pesava nos ombros femininos, o volante agindo como amortecedor para o aperto de suas palmas, Aaron ao seu lado, tão taciturno quanto a introspecção que ela adotava. Sandro parecia inquieto, os olhos perambulando pelo interior do carro, pela vista panorâmica da ilha, encarando as próprias mãos e com respostas de apenas uma palavra por todo o trajeto de quase duas horas até o Monte Cielo.
O pico glacial reluzia sob o céu límpido, o gelo refletindo como um diamante. Mesmo ao pé da cordilheira o ar já era lancinante, fisgando os pulmões e cortando as bochechas. Com um longo olhar trocado entre eles, ergueram a bolsa contendo os equipamentos que ele havia alugado, retirando as roupas apropriadas e as vestindo por cima das camadas térmicas que Alessandro havia os instruído a portar. A previsão era inconstante, como parecia ser a norma nos arredores da cadeia de montanhas que tinha o Cielo como o maior pico, e não sabendo o que exatamente os esperaria, equipavam-se com piolets, arneses, celulares analógicos, crampons, GPSs com bússola, capacetes, luvas, bastões, cordas, botas e barracas térmicas. Garrafas com água e comidas eram mantidas separadas, em compartimentos impermeabilizados e próprios, de fácil acesso. Por sorte, ambos possuíam um bom condicionamento físico e apenas uma aclimatação de algumas horas, nas partes mais planas e baixas do Monte, fora necessária.
A centenas de metros do nível do Tirreno, Aaron e Neslihan então começavam a ascensão de milhares de metros até o topo, para então se aventurarem no desconhecido do Vale, onde o suposto avião havia desaparecido há quase um século. O terreno íngreme era a menor das preocupações, quando glaciares repletos de crevasses tornavam cada passo incerto. Nevascas os faziam se agarrar à encosta da montanha traiçoeira, por horas incapazes de sequer enxergarem um ao outro, apenas o instinto comunicando que não haviam perdido a conexão que os mantinha próximos. Em meio às tempestades, a neve parecia se intensificar a cada centímetro que se aproximavam do pico, a barraca se tornando inútil, impossível de ser utilizada com o entardecer. Com a junção de vento e rocha os punindo, conseguiam apenas aterem-se aos bastões cravados no aclive de gelo. Neslihan era incapaz de pensamentos além de súplicas ao universo, o coração apertando a cada movimento que os aproximava do desconhecido. Não era bem aquele tipo de adrenalina que ela gostava de se alimentar.
No caminho, o cansaço pesava. O frio, a altitude, o tempo. Cada passo parecia um esforço monumental, e o pior era saber que isso ainda não era nem metade da batalha. Ele segurava firme os equipamentos, tentava manter a clareza para que pudessem continuar. Mas ele estava esgotado. Mental e fisicamente.
A subida, que deveria ter sido finalizada em um dia, já tomava quase dois, e cada segundo era um fôlego roubado de seu futuro. Um peso de centenas de anos parecia afixado ao seu peito, os braços tremulando e pernas cedendo ao terreno irregular e enganoso. A garganta se fechava e a respiração ofegante não era somente pelo esforço físico, mas por puro medo de perder Ace, de jamais chegarem ao outro lado quando tinham tomado para si aquela responsabilidade. O sentimento pujante tomava conta de cada terminação nervosa da Gökçe. Ao mesmo tempo em que perdia o equilíbrio em uma das passagens estreitas, somente o aperto de Aaron a mantendo como membro do reino dos vivos, praguejava Zafira, Khadel, Rose e quem quer que estivesse envolvido naquela sandice que a colocava à beira de um colapso.
À medida que as horas passavam na montanha carregada de neve e os perigos iam aumentando, Aaron se sentia quase sufocado pelo medo de algo acontecer com sua parceira, sua dupla, a pessoa que esteve ao seu lado nos melhores e nos piores momentos. Era um medo absurdo e irracional de perdê-la. Ele sempre cuidou dela, de um jeito ou de outro. Mas a viagem estava deixando tudo mais claro. O medo que sentiu ao vê-la quase perder o equilíbrio em uma das trilhas íngremes, a maneira como seu coração apertava toda vez que o tempo fechava de repente e ela desaparecia de vista por um segundo. Ele sempre viu Nes como sua melhor amiga, sua parceira de caos. Mas e se fosse mais do que isso? As coisas estavam confusas demais naquele momento e Aaron decidiu que talvez não fosse a hora de descartar hipóteses de maneira tão enfática.
Então, como o raiar de um novo dia, o topo estava diante deles. Deserto, desprovido de nuvens, a visão era vasta, e de onde estavam, o ar rarefeito e o cansaço físico faziam do pico uma miragem, um oásis de calmaria. Resfolegando, Neslihan, pela primeira vez desde que encontrara os olhos de Aaron na comuna de Polizzi Generosa, deixava que seu olhar se firmasse ao dele novamente. As íris se embaçavam com lágrimas, rapidamente contidas, mas permitia que as palmas enluvadas fizessem o caminho até as dele, sentindo a segurança que ele exalava, mesmo que exaurido, como ela.
Deveriam ter esperado, passado a noite descansando os músculos esgotados e recuperando a sanidade, permitindo que as mentes se acalmassem, mas já haviam perdido tempo demais na subida, e tempo era a essência. O Vale os aguardava, clamando por eles, uma força maior que os puxava para o epicentro do desconhecido. O vão entre o Monte Cielo e o Monte Vespero era o lar do Valle degli Sconosciuti, completamente inexplorado e isolado. Quase mítico, nem a mais extensa das pesquisas tinha fornecido detalhes concretos a Neslihan e Aaron. Sabiam apenas que o gelo que cobria o local era quase impenetrável, soterrando qualquer vestígio da queda secular. Com apenas algumas horas ociosas, eles discutiam possibilidades e planos, enquanto Sandro permanecia alheio, e quando se levantaram, vestindo, calçando e prendendo os equipamentos, o motivo por tal logo se revelou.
Alessandro anunciou que os levaria apenas até aquele determinado ponto. E ele não parecia do tipo que recuava fácil. Aquilo acendeu um certo alerta de perigo na mente cautelosa de Aaron, a preocupação parecia aumentar cada vez mais e ele se perguntava se talvez não fosse melhor pegar na mão de Nes, dizer que tudo ia ficar bem e abortar a missão. Será que valia tanto a pena assim descobrir quem era sua alma gêmea? De que valeria saber de qualquer coisa se havia um grande risco de morrerem? ❛ Daqui em diante, vocês estão sozinhos ❜, foi o que disse, quase como um aviso. Aaron deveria ter escutado. Deveria ter reconsiderado. Mas Nes já tinha conseguido as autorizações, e não era como se ele fosse deixá-la seguir sozinha. E se havia uma coisa que sabia sobre a amiga, é que ela conseguia ser cabeça dura quando queria. Ainda mais do que ele.
Os olhos de Neslihan faiscavam em fúria, e não fosse pela necessidade do piolet para o retorno, teria arremessado o objeto pontiagudo na figura do homem de meia idade. Se ela pudesse, teria o enterrado no declive, para nunca mais ser encontrado. Fosse ela um pouco mais cuidadosa em seu raciocínio, anuviado pela impetuosidade dos sentimentos de indignação e raiva, um sinal teria ascendido aos pensamentos, um aviso de cautela em seu consciente. Com profanidades na ponta da língua, somente a urgência de seguir em frente e acabar com aquele mistério que parecia intrigar o Blackwell e algum dos outros, fez com que ela lançasse apenas o mais vil dos olhares a Alessandro, antes de seguir a passadas firmes as imediações do pico até o outro lado.
De acordo com o mapeamento feito por Aaron, deveriam permanecer na encosta no sentido Sul por alguns quilômetros e então Leste. A apenas alguns passos na direção necessária, uma cortina de neve parecia cair sobre eles, como se eles houvessem pisado em um sensor ativando o temporal gélido. Com a baixa visibilidade, e sem o auxílio do guia, eles não tinham opção alguma se não manterem-se presos um ao outro pela corda de poliamida. Algumas horas seguindo o que achavam ser a porção austral da descida, por sorte não eram surpreendidos por profundos crevasses, mas seracs pareciam se esgueirar pelas laterais, formando uma trilha quase transcendente. Quando se depararam com uma formação impossível de escalar, restou a eles a única opção de contorná-la, e com o primeiro movimento fora do esperado consultaram os GPSs. Para o completo desespero, a agulha que supostamente deveria estar magnetizada aos polos da Terra, se movia em todas as coordenadas possíveis, hora indicando um passo deles para o Norte, o seguinte para o Oeste, outro para o Sul, e cada um dado na mesma direção que o anterior.
Pressionando as palmas contra as pálpebras cerradas, Neslihan virou-se para Aaron, repousando a testa sobre o ombro masculino. Tomando profundas respirações, pânico parecia querer tomar conta de seus pulmões, apenas o peso da mão dele contra o próprio braço fazia com que parte do senso retornasse aos nervos. Lembrava-se então do telefone com sinal de satélite, e com esperança, retirava o aparelho do bolso, somente para perceber que ele também parecia estar com mal funcionamento. Eles estavam perdidos. Completamente perdidos. Recostando contra a formação de gelo, as têmporas latejavam. Eles tinham apenas uma garrafa de água entre eles e dois pacotes de frutas desidratadas até conseguirem a saída daquele inferno gélido.
Com o olhar voltado para o horizonte que parecia infinito, um cintilar fisgou a atenção das íris marejadas. Um brilho tão sútil em meio à tormenta alva da nevasca, que precisou de um tempo isolando as palavras de Aaron, para que o prateado fosco se registrasse na retina. Exclamando, desprendendo-se dele com a abertura do mosquetão, disparou em direção ao lampejo, sem dar-se conta do ranger do gelo que seguia em seu encalço. Sabia que o homem a acompanhava, ele iria até nos confins do Universo com ela, e faria o mesmo por ele. A corrida até o que parecia poucos metros de distância mais se aproximava de uma hora, os olhos castanhos fixos ao ponto enquanto batalhava com a fadiga na respiração, o peso da mochila, e o vento que machucava a ponta do nariz, bochechas e lábios descobertos. Aquela adrenalina de um risco dando resultado era a que a energizava.
Um último pulo sobre um crevasse pequeno os colocava de cara com o que somente poderia ser a fuselagem do avião perdido. Os joelhos se afundavam na vastidão branca ao mesmo tempo em que eles arrancavam o primeiro par de luvas, cavando nos arredores da protuberância metálica exposta. O segundo par de luvas logo se tornava encharcado e Neslihan então percebia o possível motivo pela visibilidade repentina do metal retorcido. Degelo. Um riso amargo escapava a garganta ressecada. Aquecimento global, justo o que tanto a preocupava e uma de suas maiores causas, naquele momento era o maior aliado que eles poderiam pedir. Compreendia então a razão por aquele acidente parecer tão quimérico, sem visuais, sem vestígios. Somente diante do aumento das temperaturas, o derretimento do gelo e neve que se formara ao longo de quase cem anos, era possível. Balançando a cabeça em incredulidade, permaneciam tateando toda a superfície esbranquiçada, encontrando ouro, prata, bronze, madeira, louças, cerâmicas. E então, como se um ímã os atraísse, alcançaram ao mesmo tempo uma caixa não muito maior que a palma feminina.
O porta joia parecia feito de genuíno casco de tartaruga, o material pulsando entre as mãos deles, que o seguravam firmemente, receosos de que fosse uma miragem delirante de ambos. Firmando a ponta de um dos dedos da luva entre os dentes, Neslihan puxou-a delicadamente, descobrindo os dígitos, que imediatamente protestaram a temperatura negativa. Tremulando, apalpou o calor que parecia emanar, até encontrar um pequeno botão, que fez a tampa se abrir lentamente, o mecanismo certamente enrijecido pelo tempo e frio. Aninhado no veludo tão escuro como a noite, o broche descansava. Assim que tocaram o marfim que formava a delicada rosa, o mundo cessava. Os flocos de neve suspensos por meros segundos, as orbes deles presas umas às outras, castanhas às azuis. Um peso antigo que a eles não pertencia se espalhava pelo corpo de cada um, os paralisando por milésimos, antes de todas as sensações retornarem em um ímpeto, os sufocando momentaneamente. Haviam encontrado a relíquia. Imediatamente a mulher dispensava a experiência que beirava o sobrenatural como puro alívio percorrendo o sangue.
O que poderia ser descrito como euforia tomava as reações de Neslihan, que se atirava ao abraço de Aaron no mesmo instante. O sorriso era contagiante, e eles comemoravam, não importava que logo precisariam enfrentar o processo todo novamente, agora com a adição dos compassos digitais e telefones defeituosos. Os lábios entreabriam para comemorar, quando tudo ruiu.
O estalo foi a única coisa que deu tempo de ouvir antes de tudo se partir. O gelo cedia rápido demais, e num instinto, Aaron se colocava na frente de Nes. O chão sumiu sob seus pés e ele sentiu a queda. O impacto foi violento. Um som seco, um choque cortante no corpo inteiro. Algo cortou seu rosto, a dor latejante na perna indicava que algo estava quebrado. E a cabeça... Ele piscou, tonto, tentando se manter acordado. O frio mordia sua pele, a névoa ao redor parecia engolir tudo.
Com o grito que escapava dela ainda ecoando, o baque era amortecido pelo corpo de Aaron. Por longos instantes, tudo parecia girar. A destra descoberta ardendo como se a tivesse colocado no fogo, o ombro esquerdo pulsando como se o coração dentro do peito tivesse se deslocado para o local. E então algo úmido e pegajoso alcançava a palma ainda queimando.
A única coisa que importava era ela. ❝ Nessie... ❞ Ele tentou falar, a voz rouca, quase inaudível.
O som falho, rasgado e doído, era acompanhado da percepção de que o líquido que se esgueirava pelos dígitos femininos era o carmesim espesso do sangue de Aaron. ❝ Ace! ❞ Sacudindo a neblina que se formava entre os ouvidos, Neslihan era acometida por apatia incomum. O talho na tez masculina desprovida de cor era gráfico, bem como a projeção inatural do fêmur e tíbia esquerdos. Algo também não estava certo com a respiração masculina, e a maneira como a pele dele espasmava, adotando uma tonalidade azul, infundia a mulher com a mais pura e corrosiva culpa. Se não tivesse seguido adiante, se tivesse insistido em não fazerem parte daquele show de fantoches que Zafira armara, se não tivesse se atirado na direção de algo claramente perigoso, apenas para sentir a adrenalina da vitória, se tivesse se atentado que o mesmo fenômeno que os permitia visibilidade poderia condená-los, se, se, se. Era tarde demais para pensar neles.
Ela estava ali, viva. E, por um instante, isso foi suficiente para ele suportar a dor. Aaron nunca teve problema em se jogar em situações de risco. Mas agora, tudo o que ele queria era sair dali. Com ela. Porque, maldição ou não, Nes era uma das únicas coisas naquele mundo que ele não podia perder.
Um soluço quase gutural deixava os lábios, os dentes batendo um contra o outro, e somente então percebia que água gélida escorria pelas paredes ocas do glaciar que os engolira e fazia um atalho até as roupas deles. Aaron parecia ter perdido a luta com a lucidez, o corpo retesado agora sem reação alguma que não a respiração laboriosa. Deslizando pelo gelo como navalha, não mais frágil, sob eles, sentiu o tecido cobrindo os joelhos tensionar e ceder. Com a mão direita escoriada profundamente, tateou pela superfície glacial, desnorteada. Se parasse um segundo sequer, sabia que pânico tomaria o controle e não cederia seu lugar à razão. ❝ Pense, Neslihan. Pense pelo menos uma vez na sua vida! ❞ Vociferando para si mesma, podia sentir a visão turvando com a ansiedade aguda, mas cravando as unhas irregulares, umas quebradas, outras ainda intactas, no joelho exposto, mantinha-se ancorada à realidade.
O peso da mochila pressionava contra o ombro que perdia a sensibilidade, e a espalhava para o restante do braço. A constrição a fazia recordar do kit de primeiros socorros. Quase estourando o zíper na pressa de encontrar algo que pudesse ocupar a mão ainda funcional para que o raciocínio pudesse ser liberado, nem mesmo dava-se conta de que não havia nada no conjunto de suprimentos que poderia ajudar na situação de Aaron, não quando tinha a certeza de fraturas, o corte comprido e espesso demais para qualquer uma das ataduras e um possível traumatismo craniano. A destra lacerada gritava contra a aspereza de tudo que entrava em contato, quando encostou no plástico frio do GPS e celular. Fechando o punho ao redor deles, preparava-se para atirá-los contra a parede de gelo, quando viu a leitura do sinal. Impossível.
❝ Impossível! ❞ A palavra reverberava. Como ela poderia acreditar ser possível, quando há algumas horas, o mesmo aparelho parecera inútil. Poderia ser uma alucinação, ainda que não recordasse de dor alguma na cabeça? Depositando-os sobre o nylon da bolsa, levou os dígitos manchados de vermelho até a raiz dos fios, tateando o local por algum ponto sensível, sem sucesso. Retornando o olhar para Aaron, sentiu algumas lágrimas transbordarem, trilhando um caminho pelas bochechas feridas pelo frio. Com movimentos titubeantes, em descrença e desesperança, teclou 118 nos botões rígidos. Com o primeiro toque, toda a vivacidade ainda presente em seu corpo parecia se esvair em alívio. A voz mecânica não demorou mais do que cinco segundos para responder, mas que mais se assemelhavam a cinco horas. ❝ Aiuto! Ho bisogno di aiuto. Per favore. Siamo caduti e il mio migliore amico è gravemente ferito. Si è rotto una gamba... I-I-penso che abbia un trauma cranico e penso che abbia anche l'ipotermia. Anch'io sono ferita, ma ho solo bisogno che tu lo salvi. Siamo da qualche parte tra Monte Cielo e Monte Vespero. Penso… penso di poterti dare le nostre coordinate esatte, ho un GPS con me. Per favore, sbrigati e salvalo. ❞ ¹ O pedido saía quase em único fôlego, as gotas salobras caindo livremente das pálpebras. Equilibrando o telefone entre a orelha e o ombro saudável, alcançou o Garmin, e ditou exatamente o que prometera.
Assim que as coordenadas deixavam os lábios, e a linha desconectava com a promessa de que tudo ficaria bem, Neslihan retirava sua jaqueta, a colocando sobre Aaron, forçando-se mais próxima dele, na tentativa de passar o próprio calor, ainda que já pudesse ver as próprias unhas tornando-se arroxeadas ao transferir suas luvas para as mãos dele, e temesse machucá-lo ainda mais. ❝ Ace, por favor, não me deixe sozinha. Eu prometo ser uma pessoa melhor, me redimir por ter te causado isso. ❞ As lágrimas passavam a ser copiosas, comprometendo sua visão, fluindo pelo material impermeável e térmico que o cobria. Passeando os dedos pelos fios alheios, repousou a testa sobre a dele. ❝ Por favor, não me deixe sozinha. ❞ A súplica era repetida por centenas de vezes, até apenas um sussurro restar ao ouvir a rotação de hélices em meio à cacofonia dos próprios pensamentos. Com o último resquício de força em si, agarrou o porta joia e o guardou em um dos bolsos da própria calça. A Gökçe vibrava em ódio. Se ela perdesse Aaron por conta daquele maldito broche, daquela cidade infeliz, por conta daquela história de maldição infernal, ela garantiria um destino muito pior do que um século de desamor a todos.
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o sobretudo cilhando aperto sob a cintura era o único sentimento reconfortante para neslihan naquele dia . os sussurros lhe arranhavam os tímpanos e arquejos esperançosos como sal em ferida aberta , um verdadeiro pandemônio para a morena , que , ali , mais do que nunca , desejava ver khadel pelo retrovisor do seu alfa romeo . exasperada , o trilhar dos saltos ecoavam como o pulso nas têmporas , a pressão por detrás dos olhos indicativos certeiros de uma enxaqueca , caso não se distraísse do circo de barbaridades que a cidade havia se tornado . ponderava se uma taça de vinho às nove da manhã seria tão mal vista assim , afinal em algum lugar do mundo já se passava das nove da noite , quando os longos fios escuros de graziella adentraram sua visão . um suspiro em alívio passou pelos lábios da gökçe , um breve sorriso desenhando as feições , quando captou as palavras da outra ao aproximar . ❝ madonna , grazi , até você ? ❞ o som que escapava a garganta era quase um rosnar . ❝ realmente acha que esse conto de horror tem algum fundamento lógico ? ❞ meneando a cabeça em incredulidade , voltou o olhar para o céu nublado de inverno , os ombros caindo ao soltar uma longa respiração. ❝ eu conheço esse sorriso… o que você poderia ganhar com toda essa insanidade , além , é claro , de uma enorme dor de cabeça pelas próximas semanas até uma nova traição ser descoberta e escandalizar todo mundo ao silêncio ? ❞ indicando com um olhar para a direção onde seguiam , envolveu o próprio braço no alheio .
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WHERE: PIAZZA MONTALDI WHO: Graziella & MUSE ( @khdpontos )
"Dios Mio." O murmúrio em tom de reclamação era evidente dos lábios de Graziella enquanto batia o salto alto no chão da praça. Em qualquer lugar que andava só sabiam dizer somente de uma coisa: os novos seres apaixonados. Até uma matéria no jornal como manchete principal podia ser vista nas mãos de quem lia no banco da praça. "Como o ser humano gosta de se prender na esperança né? Não se sabe falar de outra coisa agora. Se bem que.." A morena parou abruptamente, um sorriso malicioso aparecendo em seus lábios. "Isso pode ser interessantemente maravilhoso ao meu favor."
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desde a mais tenra infância , neslihan fora moldada sob a rigidez do dever , envolta em ouro , mas contida por correntes invisíveis . sua existência sempre se definira por uma dolorosa dualidade , a necessidade de sentir em contraste com a imposição do autocontrole , o embate incessante entre o querer e o dever . esse conflito , enraizado em sua mente , tornara-se a fratura primordial que assombrava a parte mais sombria de seu passado . culpava , sim , a figura paterna por parte das feridas que lhe foram infligidas , algumas delas irreparáveis . no entanto , via na fragmentação de seu próprio ser uma obra cuja autoria também lhe pertencia . daquela tragédia , restara-lhe um âmago parcialmente enrijecido — sua visão de mundo tornara-se austera , seu julgamento sobre as pessoas , inflexível , e sua postura perante a própria existência , uma fortaleza intransponível . e camilo era o oposto exato de cada uma dessas certezas . para ele , tudo parecia fluido demais , como se suas convicções mudassem com a mesma facilidade com que trocava de roupas ao amanhecer , como se suas verdades fossem tão voláteis quanto os humores de um único dia .
ela não se iludia ao pensar que compreendia todas as nuances que o compunham, mas o conhecia o suficiente — anos de observação cuidadosa e encontros forçados ao lado de vincenzo ricci e aquele sobrinho haviam lhe dado a convicção de que alguém criado sob a tutela do patriarca dos ricci não poderia desviar-se tanto assim do molde original . não importava que ela própria fora forjada sob a sombra de um homem igualmente desprezível e , ainda assim , renunciara a cada valor que lhe fora incutido . não via nele a mesma ânsia de se libertar , a mesma necessidade de transcender a redoma em que cresceram . curioso como ela era capaz de vislumbrar potencial até nas circunstâncias mais desoladoras , mas quando se tratava das pessoas ao seu redor , seu olhar se tornava opaco . talvez fosse uma falha evidente para qualquer observador externo , mas naquele momento de sua vida , preferia envolver-se no véu confortável da negação . havia algo de insistente nessa postura , um reflexo interno que , por vezes , ameaçava ceder — mas então camilo lhe recordava exatamente por que isso jamais aconteceria .
bastava um gesto , um olhar carregado daquela insolência que a irritava profundamente , um simples pronunciar do apelido em seus lábios para inflamá-la de fúria… ou , se fosse brutalmente honesta , algo mais . ❝ vou providenciar . amanhã de manhã a lista completa estará na sua caixa de entrada . ❞ e assim o faria , nem que precisasse atravessar a madrugada compilando meticulosamente cada detalhe sobre o valor de cada gole do bourgogne . ❝ entendo . nem todos os homens conseguem portar-se com a sensualidade inerente de um jardineiro . ❞ a voz adquiria um timbre aveludado . ❝ todos aqueles músculos à mostra , o suor misturando-se ao aroma da terra molhada… uma essência irresistível . ❞ pareava a provocação dele , acrescentando um piscar de olho deliberado .
a observação alheia foi recebida com um sutil estreitar das íris castanhas , enquanto a sobrancelha dele se arqueava . ela seria a última a negar o que ele insinuava , por ser a mais pura verdade . o medo corria demasiado forte em suas veias para que pudesse ceder o controle e , mais uma vez , encontrar-se à deriva — presa em uma circunstância desconhecida , sozinha , dissociada de tudo que a compunha , sem sequer lembrar o que fizera para ferir quem quer que fosse . manter o domínio sobre qualquer situação que a envolvesse era a única forma de garantir que , se houvesse dor , ela fosse restrita a si mesma . ❝ não há nada demais em querer manter o controle . pelo contrário , é uma forma de satisfação como nenhuma outra . ❞ camilo não era o primeiro , e certamente não seria o último , a insinuar que sua existência dentro de uma bolha de restrições autoimpostas a condenava à infelicidade . mas vindo dele — com aquela despreocupação boêmia , aquela facilidade irritantemente leviana — , a fala ressoava como brasa queimando em seus pulmões . ❝ apreciar os prazeres da vida é uma coisa . ser completamente inconsequente ao fazê-lo é outra . saber dosar quando , como e onde os aproveito apenas prolonga a sensação de contentamento . não abro mão do que me satisfaz , apenas não me entrego aos impulsos como se o mundo fosse se desfazer em um piscar de olhos se não o fizer . ❞
levantou a taça quase vazia , deixando que o vinho deslizasse pelo paladar , apreciando a textura aveludada que o carmesim lhe proporcionava . ignorou o impulso de revirar os olhos , assim como a tentação de comentar sobre o sorriso alheio — embora , caso se permitisse um instante de análise , talvez concordasse . as palavras dele , ainda que envoltas naquele flair característico , traziam o peso de algo que lhe apertou a respiração por um breve instante , dissipando-se logo em seguida com um menear dos fios e a litania posterior . um riso seco escapou dos lábios ainda tingidos de rubro . ❝ tenho dificuldade em acreditar porque não sei se suas ações são genuínas , camilo . ❞ não se tratava de charme , como ele sugeria . a verdade era mais crua , neslihan simplesmente não sabia como reagir a ele de outra maneira que não fosse com ferocidade . não sabia se os gestos dele eram sinceros ou se carregavam as segundas intenções que pareciam reger cada um dos seus encontros , fosse naquele momento ou em qualquer outro .
com apenas duas palavras , o ricci dissipava o pulso inquieto que as provocações dele instigavam . havia algo na sinceridade que interrompia qualquer pensamento alheio naquele instante , deixando apenas um eco silencioso que se espalhava até as pontas dos dedos — uma sensação estrangeira . com um aceno hesitante , aceitou o pesar que ele oferecia . talvez aquele fosse um dos raros momentos em que poderiam ser genuínos um com o outro , sem a necessidade de pretextos . ela sequer era nascida quando a mãe de camilo fora internada e jovem demais para recordar-se do momento em que a doença lhe roubara a vida , mas a história era de conhecimento geral , e a morena sentia a perda dele como apenas quem já houvesse experimentado dor semelhante poderia compreender . imaginava que , para uma criança , a ausência materna fosse ainda mais avassaladora do que para um adulto — como fora em seu caso . mas mesmo tendo quase duas décadas a mais ao lado da própria mãe , por vezes parecia que münevver muito antes deixara de pertencer ao mundo dos vivos . a fisgada que a lembrança causava era lancinante , embora logo se dissolvesse diante da confusão provocada pelo gesto dele ao erguer a mão em sua direção .
o riso masculino percorrendo a extensão da pele exposta era o motivo por finalmente conceder , embora as palavras ditas em divertimento recobrassem a consciência de algo que não saberia nominar . com a palma aninhada no aperto alheio , neslihan inclinou-se , os dígitos formigando antes mesmo de entrarem em contato com os fios acetinados . seguiu o movimento conforme ele guiava , podia sentir o calor que ele irradiava subir pelos braços , até que o toque feminino encontrou o pequeno relevo , uma resistência sob a superfície . assentiu ao questionamento antes de pender a cabeça , enredando os dedos pela pele alheia enquanto ele explicava . a menção de um acidente — automobilístico , como aquele que ela mesma protagonizara — provocou um breve sobressalto com semelhança inesperada .
assim que sentiu o fragmento incrustado , poderia ter retirado a mão , encerrando ali a conexão , mas não o fez . não até que ele finalizasse , até que aumentasse a distância entre eles e desfizesse a leve pressão que os mantinha ligados . só então neslihan recolheu o braço , cerrando o punho de maneira quase imperceptível antes de repousá-lo no colo , onde o linho do guardanapo descansava sobre as pernas . desanuviando a garganta , que de súbito pareceu ressequida , indagou . ❝ e não te incomoda em nada ? não é perigoso que permaneça por todo esse tempo ? ❞ as perguntas saíam com mais curiosidade do que desejava , com uma preocupação que transparecia em excesso clareando a voz . embora ela própria não apresentasse sequelas físicas do acidente de tantos anos , as invisíveis a atormentavam mais do que qualquer cicatriz que pudesse ser vista .
esboçou um sorriso diante da colocação dele , embora os ombros permanecessem retesados sob o formigamento que ainda reverberava da palma para o restante do corpo . enquanto ele ponderava sobre o que compartilhar , por um longo momento , manteve as íris fixas na expressão distante que se instalava nas feições do mais velho . percebia , então , que já fazia algum tempo que seus olhos não sentiam a necessidade de se desviar da intensidade que camilo personificava . a constatação a fez quebrar o contato visual de imediato . refugiou-se no cristal vazio sobre a mesa , nos talheres de prata quase intocados , na comida negligenciada , no tecido carmesim que deslizava sobre suas pernas conforme as descruzava e cruzava no lado oposto . na tentativa de não ser consumida — seja lá pelo que estivesse tentando enraizar-se dentro dela naquele momento — precisou piscar algumas vezes quando a voz grave rompeu o silêncio , trazendo-a de volta à realidade antes que se perdesse nos próprios devaneios .
com a simples menção da fazenda , soube que a história recontada puxaria as cordas de seu coração . era inevitável . sabia bem o que ele fazia por aquele lugar e , se camilo tivesse consciência , entenderia que essa era a única fraqueza que poderia usar contra ela . o repuxar dos lábios se expandiu de forma quase natural , mas logo tomou um arco agridoce . amor . antes que ele enunciasse a palavra , ela já a havia formado em sua mente . a história que ele tecia era uma representação genuína do que o amor poderia ser , e pela primeira vez , talvez neslihan compreendesse um módico do que aquele sentimento mítico significava . com os olhos mais úmidos do que o tempo permitia , engoliu em seco antes de menear os fios levemente . ❝ que bom que ela escolheu a pessoa certa para cruzar o caminho . ❞ a sinceridade na entonação era mais palpável do que gostaria , mas já não se esforçava tanto para controlar cada flexão de sua voz , calcular cada gesto . ❝ e… ela está bem hoje ? foi adotada ou continua por lá ? ❞ não ousaria pedir que ele a mostrasse , fosse o caso , mas tinha a amizade de esperanza há tempo suficiente para saber que a mulher a guiaria mesmo sem um nome .
e então, mais uma vez , ele insistia em se esconder sob aquela fachada . já não restavam dúvidas de que era um disfarce — não para ela . ali , a forma como o ricci a vestia como uma segunda pele era escancarada , mais espessa do que a verdadeira , uma armadura que rivalizava com a que ela própria carregava , feita de controle e distância . ❝ não , ainda não tive o imenso privilégio de presenciar cena tão deplorável quanto ver mulheres se atirando em sua direção por conta de um sorriso bonito e um animal adorável nos seus braços . ❞ mesmo com a sobrancelha arqueada em ironia , as palavras não carregavam a mesma mordida usual .
com uma mordiscada na mozzarella , permitiu que o sabor suave , amanteigado e fresco se espalhasse pelo palato . tomando o cristal entre os dedos , levou-o aos lábios , sorvendo o líquido por completo antes de ceder-se a mais uma dosagem do grand cru . permaneceu em silêncio por alguns instantes , recuperando a memória exata do momento em que uma decisão infantil selara algo que a acompanharia até a morte . ❝ bem , tinha exatos seis anos . era o dia do meu aniversário e , como sempre , um banquete era esperado . não importava que , entre os convidados , houvesse mais parceiros de negócios do meu pai do que amigos meus — liv estava lá , e era a única . ❞ concedeu brevemente , antes que a lembrança a puxasse de volta . ❝ estávamos brincando , a contragosto de muitos , porque onde já se viu uma criança querer brincar na própria festa ? e , sem querer , acabei entrando na cozinha . era um território proibido nos dias de comemoração . ❞
hesitou por um instante antes de continuar . ❝ e diante dos meus olhos , estava o cozinheiro abatendo alguns coelhos , enquanto partes de cordeiros , em diferentes estados , espalhavam-se pelas panelas e ilhas . lembro de sentir um pedaço de mim se esvaindo junto deles , e ali prometi que jamais compactuaria com aquilo . ❞ a voz , ainda que suave , conotava a mesma firmeza de quando tinha a pouca idade . ❝ palavras fortes para uma criança que dependia dos outros para se alimentar . no início foi... complicado , mas uma vez que meu pai percebeu que aquela era uma batalha perdida , tive gioconda ao meu lado . ❞ omitia a parte em que o homem a deixara dias sem comer como punição , ou quantas vezes precisou desmaiar de fome diante dos conhecidos dele até que sua vitória fosse concedida . aqueles detalhes camilo não precisava saber . tampouco que , ironicamente , a recordação estava entre as mais felizes que guardava sob o teto dos şahverdi — puramente ligada à presença da cozinheira que lhe ensinara tudo o que ainda recordava no presente .
tomando mais um gole do vinho , levou a manicure até o queixo , como se pensasse profundamente a questão seguinte . ❝ se você pudesse mudar apenas uma coisa na sua vida , o que seria ? ❞ já que a proposta inicial dele , ainda que dúbia , era se conhecerem , neslihan não se manteria na superfície rasa onde ele parecia querer conduzi-la . ainda que , até ali , nenhuma resposta dela — ou dele — tivesse sido menos do que carregada .
o problema de pessoas como neslihan era que através de suas lentes duramente arbitrárias, por vezes colocavam-se em um lugar de condescendência que as cegavam para qualquer não obviedade. camilo podia não ser o maior filantropo (ou sequer ser considerado um de qualquer modo), mas antes de qualquer coisa, o ricci não saía de seu caminho para prejudicar ninguém. não era um homem bom, mas será que era justo considerá-lo um homem mau? egocêntrico, sim. superficial, com toda certeza. mas no final das contas, não havia verdadeira maldade nele. o trabalho com os animais poderia ser um bom indicador de que ele não era fisicamente incapaz de fazer o bem, e por mais que muitos pensassem que aquilo não passava de uma fachada, neslihan o observara na fazenda vezes o suficiente para reconhecer a autenticidade de suas intenções. assim ele presumia, pelo menos. ‘se mudar a vida de uma única pessoa, já terá feito mais do que espero de você.’ o sorriso quase vacilou, a postura alheia e os dizeres descrentes o atingiram um pouco mais do que estava disposto a demonstrar. camilo podia se considerar o centro do próprio mundo e priorizar a si mesmo com frequência, mas estava absolutamente distante do exemplo de amor próprio. alguém tão indulgente em pecados do mundo, tão irresponsável e auto destrutivo não poderia ter qualquer carinho sincero por si mesmo. o olhar da turca o recordou, por alguns segundos, que aquela era simplesmente a sua sina: sempre esperariam o pior dele. sua família, seus colegas, desconhecidos, todos. palavras que ouvira por anos de seu pai reverberaram no fundo da mente, mas balançou a cabeça em uma tentativa de afastá-las. não era momento de auto piedade. chegou a pensar em valentina, em como se dedicara nos últimos dez anos para garantir que a garota tivesse as melhores oportunidades. poderia ele considerar que havia ajudado a melhorar uma vida, quando também fora responsável por destruí-la antes? “por que não faz uma lista, hani? assim não deixamos nada disso escapar.” afirmou, beirando a provocação, embora ainda fosse sincero. “eu só prefiro ter alguém para plantar as árvores. não fico bem de jardineiro”
a resposta a respeito de suas vontades fora intrigante. “são palavras demais pra dizer que você tem medo de perder o controle” devolveu, arqueando uma sobrancelha. se camilo era excessivamente indulgente, neslihan parecia o oposto. como se transformar a vida em uma sucessão de represálias fosse nobre. “existe muito valor na liberdade de admitir que a vida vale a pena pelos prazeres que proporciona. em reconhecer que você não é melhor que ninguém por abrir mão disso, só… menos feliz” deu de ombros, finalizando o conteúdo da taça. não evitou uma risada sincera com o comentário seguinte, assentindo em concordância. “o que posso dizer? meu sorriso é muito bonito” dessa vez havia leveza no tom, demonstrando que pelo menos naquele ponto ela havia vencido o embate de provocações certeiras e ininterruptas. “nah. prefiro algo mais…” gesticulou para ambos, indicando que falava sobre o encontro. “…estimulante.” a conversa entre eles era sempre interessante, afinal. “duvido que você acredite em qualquer gentileza da minha parte, neslihan” e somente poderia torcer para sua inclinação dramática lhe conferir a mesma qualidade de um ator ao tentar disfarçar o resquício de ressentimento em sua frase. “até porque, convenhamos, é o que estou fazendo a noite toda e você continua convencida do contrário” o carro, os elogios, o menu, a água, a mesa na parte externa… não havia sido menos do que gentil até então. vulgar, quem sabe, mas certamente longe da grosseria. “mas tudo bem. faz parte do seu charme” complementou, piscando um dos olhos.
esperou uma resposta evasiva, ou uma história de pouca importância. o ocorrido descrito pela gökçe apenas provava que muito embora ele soubesse interpretar pequenos sinais muito bem, estava longe de considerar que a conhecia o suficiente. pego de surpresa diante da franqueza, ouviu com atenção. a informação da morte de sua mãe não era inédita (todos sabiam naquela cidadezinha), mas não pôde evitar se abalar com o assunto. era seu calcanhar de aquiles, mesmo. “sinto muito” e de tudo o que havia falado a noite inteira, aquelas duas palavras provavelmente carregavam a maior carga de honestidade até então. nem havia notado que mal se dedicara à comida exposta a sua frente, dada tamanha atenção que a mulher detinha. ainda que o assunto da morte da figura materna fosse o que mais lhe havia chamado atenção, não deixou de perceber a coincidência escondida na menção de um acidente. assim que a pergunta foi devolvida, ele soube exatamente o que contar. estendeu a própria mão, pedindo a dela. riu quando notou a confusão e receio nos olhos alheios. “não vou morder. nem te pedir em casamento. prometo” e esperou que a jovem colocasse a mão sobre a dele. assim que o fizera, camilo a levou até a parte de trás da própria cabeça, pouco acima da nuca, entre os fios escuros. tateou o local com a mão feminina, até o indicador da mais nova encostar em uma pequena protuberância que facilmente passaria despercebida. “sentiu?” aguardou alguma confirmação. “é um fragmento bem pequeno de vidro, de um acidente de carro há uns bons anos. era mais perigoso uma cirurgia para retirar do que não fazer nada. então decidiram deixá-lo” era um lembrete dolorido do passado; do enorme erro cometido. não comentou sobre como o acidente havia ocorrido e nem o fato de não estar sozinho na ocasião. aquilo, por hora, ainda preferia manter em segredo. “para ser justo, a equipe médica que me atendeu também sabe disso. mas eu nunca contei, eles só estavam lá” brincou, soltando sua mão e finalmente provando a comida disposta à sua frente.
“uma ótima pergunta” reconheceu, reclinando-se para pensar melhor. já havia vivido tanto, feito tanta coisa… o que, de fato, o havia surpreendido? não sabia quanto tempo havia ficado em silêncio, perdido em pensamentos, mas quando se deu conta a resposta desencadeou a deixar os lábios sem qualquer auto controle. “sabe que a fazenda começou por uma ideia do meu pai? por um motivo... menos do que nobre. quer dizer, eu sempre gostei de animais, mas demorou um pouco até eu me envolver de verdade. no começo era só uma tarefa que eu tinha que executar." explicou de início, a fim de contextualizar a história que estava por vir. "então teve um dia que eu estava caminhando bem no meio das árvores, ali no final da propriedade, perto do lago. uma cachorrinha apareceu. veio até mim, direto, sem medo. estava tão magra que dava pra ver cada osso, tão suja que eu tive dificuldade de saber qual cor era o pelo. tinha um machucado na perna que não parecia recente, mas estava longe de cicatrizar. eu pensei em levá-la comigo, dar comida, cuidar, como fazíamos com todos os animais ali. mas quando tentava pegar no colo, ela não deixava. e não era que ela não me deixava encostar nela! só não me deixava tirar ela do lugar, mesmo. se eu tentava, ela colocava todo o peso pra baixo. nem sei de onde ela tirava força pra isso. então eu entendi que ela não queria me acompanhar, queria que eu a acompanhasse. quando eu finalmente deixei ela me guiar, correu até um buraco cavado atrás de um tronco de árvore caída, uns metros adiante. no buraco tinha um filhotinho pequeno e quase tão magro quanto ela. quando eu peguei ele no colo, ela desmaiou, como se finalmente a força dela tivesse acabado." lembrava-se de achar que o animal havia falecido, na ocasião.
"levei os dois correndo até o veterinário da fazenda e ele disse que, pela situação que a cadelinha estava, toda a força e energia que ela teve pra salvar o filhote foi praticamente um milagre.” pausou, como se pudesse ver na sua frente a imagem da cachorrinha sarnenta e magricela. ergueu a mão como que em rendição. “culpe a maldição, se quiser, mas foi a primeira vez que eu…" pensou em como explicar, a testa franzindo enquanto ele achava as palavras. "bom, foi a primeira vez que eu realmente vi amor” ele podia nunca ter sentido nada parecido, mas era inegável o que havia presenciado. “ foi depois desse dia que eu passei a levar a fazenda a sério” acrescentou, um último comentário antes de perceber o peso da história que lhe escapara. “além disso, já viu como as mulheres me olham quando eu estou com um filhotinho na mão? é um afrodisíaco natural” certo, aquilo deveria equilibrar um pouco a situação, possivelmente. serviu a ambos um pouco mais do vinho. “mas então, há quanto tempo é vegetariana?” parecia uma pergunta segura e suficientemente impessoal, para variar.
inclinando a cabeça em sinal de concordância , os dedos acompanhando ritmicamente suas palavras . ❝ é como eu disse... parece que alguém decidiu colocá-la sob os holofotes , e quem sabe o motivo ? ❞ exalando o ar , impaciente , irritava-se com a obsessão cíclica que a cidade demonstrava por certos assuntos . era quase como se os habitantes existissem apenas como figurantes , ávidos por um drama que os distraísse da monotonia . seus pensamentos se dispersaram , revisitando os acontecimentos recentes e a maneira desmedida como reagiam a qualquer mudança — como se presos em um tempo que parecia imóvel , em que um mero sussurro era capaz de desencadear uma tempestade . por um breve momento , o pedido de aaron se tornou apenas um ruído de fundo , até o tom dele interromper o fluxo de suas ponderações dispersas . o nome olivia raramente culminava em sorrisos , e embora não fosse conhecida por recuar diante de um confronto , não estava exatamente inclinada a iniciar o dia sob a nuvem densa de irritação e ressentimento que parecia pairar sobre o blackwell sempre que o tema emergia . contudo , ela sabia o custo que tocar na ferida profunda , uma que ele carregava desde a pré-adolescência, possuía . ❝ ace... ❞ o apelido de infância escapou os lábios com uma nota de exasperação , na tentativa de conter a intensidade de sua intervenção . ❝ eu sei . sei que seus sentimentos são completamente justificados , e reconheço que o que aconteceu foi cruel , com nós dois—nós três , mas... toda história tem dois lados . sim , você tentou com todas as forças resgatar o que perdemos , mas , aaron , já considerou que algo maior pode a ter impedido de se abrir com você naquele momento ? ❞ entendia mais que ninguém o peso da rejeição que ele ainda suportava . ela também fora atingida pelos estilhaços daquele laço desfeito , e mesmo persistindo em incontáveis tentativas durante um período muito mais longo que ele , só conseguira uma brecha nas muralhas de olivia . ainda assim , quase quinze anos depois não poderia dizer que haviam restaurado a familiaridade perdida . em vez disso , precisaram reinventar a amizade , moldando-a às barreiras que de interpuseram entre elas . ❝ não estou sugerindo que você deva agir como se nada tivesse acontecido , mas... talvez... apenas talvez considerar um recomeço ? liv também sofreu , acredite ou não , mas , às vezes , as pessoas precisam mudar para sobreviver a uma nova realidade . ❞ neslihan estava longe de compreender em totalidade o que acontecera com olivia durante os anos fora de khadel . ela nunca se abrira por completo , mas algumas das feridas da mais nova pareciam se comunicar silenciosamente com as suas próprias . era como se houvesse uma compreensão tácita entre elas , mesmo que as palavras não dessem conta de traduzir as experiências vividas . como a boscharino , a gökçe também havia criado suas próprias defesas , embora tivesse encontrado refúgio na força de suas amizades , e não o contrário . ❝ ela errou em dizer que você não tentou , mas acha que existe a possibilidade de ela ter dito isso apenas para feri-lo , como forma de devolver o que sentiu quando você desistiu de persistir no passado ? ❞ a outra era um enigma , uma figura tão complexa que era impossível tentar julgar suas ações ou palavras com demasiada severidade . ainda assim , não seria surpresa se o impulso de provocá-lo fosse apenas uma estratégia para romper a apatia que ele usava como armadura . afinal , fora com provocações que haviam conquistado a amizade na infância , e era o que neslihan fazia diariamente . com a diferença de que ele a permitia . ❝ e quanto a ela ir diretamente te importunar... você mesmo mencionou que havia outras pessoas trabalhando , por que não pediu alguém para atendê-la no seu lugar ? por que escolheu lidar com ela , mesmo quando poderia a ter evitado ? ❞ ela não conseguia deixar de pensar em como algo que antes os unira tão fortemente havia se transformado em uma barreira quase intransponível .
"As pessoas dessa cidade gostam de falar muitas coisas, eu não colocaria tanto crédito nisso. Até porque…", e Aaron era um pouco cético quanto aos diversos boatos que rondavam a cidade. "Como uma pessoa teria poder para mudar tantas coisas?". Ele não acreditava naquilo, naquela capacidade de uma pequena variável, entre tantas outras na cidade, causar um efeito tão gritante. Para ele, os moradores apenas queriam alguém que para culpar, principalmente se a figura não se encaixasse. Blackwell sentia empatia pela forasteira e…até admitia, gostava um pouco dela. Ela tinha algo de peculiar. No entanto, ao ouvir o questionamento sobre Olivia, todas suas divagações sumiram. Ele ergueu a mão para fazer o pedido de sempre, aproveitando a justificativa para pensar no que responder para a Nes. Olivia sempre era um tópico sensível para ele, até porque uma parte de si — sua parte mais mesquinha — sempre desejou que Nes também tivesse parado de falar com a outra quando eles brigaram. Ele se sentiu tão traído pelo sumiço de Fuentes, quando ainda brincavam de ser gente, que desejava ter apenas para si a amizade de Nes. Como se aquilo talvez provasse o ponto de que ele era que estava certo. Foi só quando a comida chegou, e Nes voltou a fazer a pergunta de 'Quem puxou o assunto primeiro?', que Aaron respondeu, dando de ombros. "Sei lá, os dois?", ele balançou a cabeça, irritado. "Na verdade, a culpa foi da sua amiguinha. Eu estava tranquilo no bar, e tinham outras pessoas trabalhando ali, que ela poderia ter facilmente ido fazer o pedido, sabe? Mas não…ela tinha que vir falar comigo. Ela tinha que encher o meu saco". Só de lembrar da cena, ele sentia o corpo querer voltar a tremer de raiva. A mera lembrança dela era capaz de desestabilizá-lo. Aaron considerou reclamar do fato de que Olivia lhe acusou de ser atraído por ela, mas ficou com medo da resposta de Nes. Temia que a melhor amiga concordasse, por isso, reclamou de outro ponto: "Ela veio dizer que eu coloco ela como vilã, que eu nunca tentei entender o que realmente aconteceu e não sei o quê, sendo que…" Ele ergueu o olhar e balançou a cabeça, lembrando das vezes que tentou ir atrás dela quando Olivia não estava na cidade. E não conseguiu dizer mais nada, porque não conseguia organizar tudo o que queria falar. Era isso que Olivia causava nele. "Não é verdade", se limitou a dizer.
✉️ : se você diz... mas meus olhos sabem exatamente o que viram ✉️ : bom , podia fazer como eu faço e sair dessa cidade vez ou outra ✉️ : iria te fazer um bem absurdo , garanto ✉️ : uhm , talvez porque você estava em um encontro e parecia estar aproveitando ? ✉️ : e eu também estava meio que ocupada tentando lidar com camilo ✉️ : roupas sociais ? absolutamente não . mas se não foi você que escolheu... ✉️ : e não fui eu que te ajudei... ✉️ : quem foi ? ✉️ : como assim que tipo de aposta ? apostas são apostas , ele tinha direito a escolher o que quisesse ✉️ : e felizmente escolheu apenas um jantar ✉️ : aplaudi-lo por qual motivo exatamente ? ✉️ : francamente , eu esperava mais da sua confiança em mim , aaron ✉️ : mas claro que você ficaria impressionado com ele , homens sempre apoiam homens afinal , não é mesmo ?
📲 [aaron]: primeiro de tudo, sem exagero. eu não estava sorrindo abertamente.
📲 [aaron]: eu só não posso fazer nada se quase nunca tem gente nova nessa cidade.
📲 [aaron]: até pq, não sei se você se lembra, mas eu trabalho em um bar. é minha obrigação saber as coisas.
📲 [aaron]: segundo, se você me viu, por que diabos não falou nada?
📲 [aaron]: e "incrível em roupas sociais"? agora eu tô ofendido. você não acha que eu consigo escolher uma boa roupa sozinho?
📲 [aaron]: nes, nes, nes...
📲 [aaron]: eu percebi aqui o q você está fazendo. não tente mudar de assunto. Ricci ganhou uma aposta? que tipo de aposta? e por que você aceitou isso?
📲 [aaron]: sério, nes. não acredito que você caiu em uma do Milo...infelizmente, vou ter que aplaudir ele por isso
𝒕𝒉𝒆 𝒂𝒄𝒕𝒊𝒗𝒊𝒔𝒕 ! neslihan gökçe , 29 , human rights lawyer . can you hear my heart beating like a hammer ?
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